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sexta-feira, 8 de abril de 2011

A ADOÇÃO UMA VISÃO DA PSICANÁLISE

ADOÇÃO
Algumas Considerações Interdisciplinares
"A Psicanálise ocupa-se do domínio das idéias;
estão aí incluídos pensamentos e sentimentos de todos os tipos".
W.R. Bion, "Two papers: the grid and caesura"
Escolhi essa frase de Bion para começar a pensar em que a Psicanálise e os psicanalistas podem colaborar com as pessoas que lidam diretamente com a adoção de crianças. Como podemos, profissionais das idéias que somos, auxiliar, não só na compreensão, mas em uma maneira mais adequada de viabilizar e promover esse processo tão complexo que é a adoção.
O tema da adoção toca a todos nós, pois nos reporta as nossas origens, reais e imaginárias, à fantasia da cena primária, à separação e perda, a um novo nascimento e, outra vez, a uma nova separação e perda.
Por diversos motivos, como a morte da mãe, ou por não ter sido suficientemente desejada por ela, a pessoa colocada para adoção sofreu a perda do objeto primeiro com quem, bem ou mal, teria a oportunidade de elaborar suas angústias esquizo-paranóides e depressivas. Tal perda se deu, não como feto que precisa nascer "para adentrar em uma vida pessoal", como dizia M. Buber, mas de fato e sem perspectiva de que uma relação emocional seja retomada, reparada e desenvolvida.
A adoção, envolve uma nova gestação — agora simbólica — e um novo nascimento, com a reedição da situação de separação e perda originais. Envolve a passagem de um imaginário familiar a outro, totalmente desconhecido, no qual não se foi gestado, do qual não se foi parido. As "agendas ocultas" são outras.
Além disso, a dicotomização da dupla parental que, como observa Danielle Quinodoz em sua análise do mito de Édipo, permite que se escape da complexidade da relação triangular, na adoção não se dá só como processo oriundo da fantasia. Ela é confirmada na realidade, o que traz complicações adicionais à elaboração do complexo de Édipo.
Nesse mesmo artigo, prossegue Quinodoz, " [...] se o mito deu a Édipo dois casais de pais foi para expressar uma tendência universal inconsciente de dicotomizar as imagos parentais e os afetos correspondentes (cada afeto dicotomizado correspondendo a um dos aspectos dicotomizados do objeto interno), a fim de evitar inconscientemente a ansiedade de castração e, de modo geral, a ansiedade gerada pelo conflito de ambivalência edipiana, e também para escapar ao sentimento de solidão frente ao casal parental".
Assim, enquanto que na criança que mantém uma relação suficientemente boa com seus pais intactos na realidade, a dicotomização exerce uma importante função de protegê-la das intensas angústias concernentes à elaboração da ambivalência edipiana, na criança adotada, a dicotomização enfrenta constantemente, em suas fases precoces, o ódio por ter sido abandonada na realidade, o remorso por não ter sido capaz de reter o objeto de amor e a culpa por tê-lo odiado e perdido.
Uma grande distância guarda essa fase inicial de outra muito mais avançada, que é a que permite o aparecimento da gratidão à vida, por ter-lhe permitido ser ‘escolhida’ e querida pelos pais adotivos .
Lembro-me de um rapaz de 17 anos que atendi que, devido à morte dos pais em um acidente de automóvel, foi adotado pelos tios paternos, quando contava 3 anos de idade. Demorou cerca de três anos de análise para que Daniel pudesse começar a elaborar um luto que parecia ter sido congelado em idade muito precoce. Era como se Daniel precisasse refazer, na análise, um percurso mental, bruscamente interrompido, de apego-desapego, e elaboração de fantasias arcaicas de abandono e de fragmentação, mas da ‘frente para trás’, fazendo o caminho de volta, para, quem sabe, sentir-se adotado e querido, ou mesmo parido, por mim. Porém, dava-me a impressão de que a experiência analítica com Daniel processava-se em uma ‘virtualidade’ qualitativamente diferente da de outros pacientes que, sem tais perdas reais tão dramáticas, vêem-se, portanto, menos intensamente confrontados com angústias semelhantes. A vida não tinha lhe dado chance. Nesse cenário de ameaças constantes, Daniel precisou de três anos de análise para me ‘adotar’ como sua analista.
É certo que esse paciente precisou se confrontar com ansiedades advindas de duas diferentes fontes: a morte repentina dos pais e a adoção por parte dos tios. No entanto, o que se observa nas pessoas adotadas, é que a adoção pressupõe sempre uma morte, mesmo quando os pais biológicos estejam vivos.
Um outro fator que complica a elaboração do ódio de um lado e do luto de outro, é a falta de informação que usualmente cerca uma adoção.
Popularmente sempre se acreditou que era melhor a criança não saber que era adotada para não se sentir ‘traumatizada’ e para que não fosse estigmatizada socialmente. Isso permitia e permite que uma situação de segredo ronde e cerceie a família e as pessoas próximas, envolvendo-as num pacto de silêncio, propício ao aparecimento de uma rede, no imaginário familiar, das mais diversas crenças e teorias.
Foi mais ou menos isso o que aconteceu com Daniel. Apesar de ele ‘saber’ de sua adoção, não podia falar sobre ela. Um mistério cercava a morte dos pais, e perguntar a respeito era algo sentido como muito perigoso pelos membros da família, capaz de desmantelar a ‘coesão’ familiar.
No início desta breve comunicação, me perguntava sobre como os psicanalistas poderiam contribuir com aqueles que lidam com crianças adotadas, com as famílias que colocam seus filhos para adoção e com as famílias que adotam.
Penso como Bion quando ele diz que nós devemos nos ocupar com a verdade, mesmo quando não temos idéia do que ela seja. E a psicanálise pode nos guiar nesse universo de sentimentos intensos, de dor, remorso, culpa e gratidão que demandam significado e que permeiam uma adoção.
É utilizando a escuta e a compreensão psicanalíticas e propiciando que a verdade seja enfrentada, que o analista pode colaborar para que as incertezas dos que lidam diariamente com a adoção, sejam melhor canalizadas e elaboradas, evitando muito sofrimento desnecessário. Daniel e sua família teriam sido mais felizes talvez, se pudessem ter conversado mais e guardado menos segredos.
Essa situação de manutenção do segredo, de não poder falar abertamente sobre a realidade dos afetos, preocupações e dores, pode, a meu ver, ser sustentada pela inadequada aplicação da lei que prevê a ‘adoção plena’. Em conseqüência desta lei, a criança adotada, pode nunca chegar a saber de sua condição, salvo por meio de ação judicial, pois não há nada em seus documentos como na certidão de nascimento por exemplo, que mostre a sua origem biológica.
Se há a intenção de garantir a igualdade entre os filhos — adotados e não adotados —, há por outro lado, o risco de que seja mantida, ou até encorajada, a ‘não-verdade’. "Entendo assim, que há a possibilidade de ser requerido mediante ação judicial, certidão da sentença que determinou a adoção e por que não de mais outras peças do processo?! Sem dúvida o legislador cancela o registro civil anterior, mas não elimina os vestígios e dados constantes do processo judicial de adoção. Pretende-se proteger a família (adotantes e adotado) da melhor forma possível e, segundo o legislador é cancelando o registro original do adotado". Como pode-se ver, só mediante uma ação judicial, isto é, por meio de um longo e, muitas vezes, penoso caminho, é que a pessoa que foi adotada, chega ao conhecimento de sua origem.
Tal circunstância pode favorecer a manutenção do preconceito e da crença que ‘saber a verdade, traumatiza’. Isto pode avalizar que sentimentos de ódio, remorso e culpa, mais intensos no caso de crianças adotadas e que fantasias de roubo, também mais presentes nos pais adotantes, sejam escamoteados. Uma conseqüência séria, poderá ser o aparecimento deficiente ou mesmo o não desenvolvimento da gratidão. Lembremo-nos daquele filme tão sensível "Verdades e Mentiras". Como foi importante para aquela moça adotada poder resgatar sua mãe biológica.
Um dos argumentos utilizados contra o ‘contar a verdade’, defende que, o quê importa não é a origem biológica, os pais biológicos, mas os pais afetivos e a relação que se estabelece entre os pais adotantes e a criança adotada. Trata-se da diferença entre paternidade e parentalidade. Sem dúvida, que a parentalidade e a relação emocional entre criança, pais e eventuais irmãos, é de extrema importância. Porém, penso que são dois fenômenos distintos, relativos a dois planos diversos e que não se excluem mutuamente. Ambos são necessários à constituição do imaginário individual, e a manutenção do ‘tabu’ em relação aos pais biológicos, só incrementa fantasias desagregadoras de cunho esquizo-paranóide.
Apesar de tudo isso poder ser óbvio para o analista, não o é para quem lida diretamente com questões relativas à adoção. Os representantes do Poder Judiciário, que é quem autoriza e formaliza esses novos vínculos, muitas vezes não têm noção dos efeitos psicológicos negativos de uma adoção mal conduzida.
Há outras situações importantíssimas em relação à adoção, que demandam nossa reflexão e um maior intercâmbio de idéias, e que dizem respeito à adoção por homossexuais e por pessoas solteiras, ou àquelas concernentes à fertilização in vitro, à inseminação artificial e à barriga de aluguel, por exemplo. Situações cada vez mais comuns no nosso cotidiano. O que teria a psicanálise a dizer sobre isso? Como poderíamos, nós analistas, estimular o debate, não para impedir ações desse tipo, mas para levantar considerações? Como poderíamos ampliar a observação de fatos relevantes que não são levados em conta muitas vezes? Como seria possível fomentar pesquisas a respeito de possíveis conseqüências para, até mesmo quem sabe, modificar as nossas teorias?
Penso que em todas essas questões, a nossa contribuição pode ser de valor. Trocar idéias, que para nós, como bem mostrou Bion, são transitivas e estão sempre em trânsito, com os profissionais do Direito, assim como com os do Serviço Social pode realmente servir de co-laboração. Trabalhar diretamente com as famílias e crianças envolvidas, ajudando-as a tecer vínculos mais claros e seguros, pode estimular o estabelecimento de relações mais verdadeiras e, porque não, mais felizes.


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