Postagens populares

sexta-feira, 8 de abril de 2011

GRUPO DE PSICANALISE FORTALEZA -CE

A questão da formação do psicanalista é preocupante nos dias de hoje, vez que circula, na Câmara Federal, um projeto de lei para regulamentar a profissão, elaborado, sem nenhuma dúvida, por alguém ou por alguns que desconhece(m) inteiramente premissas básicas da questão. Por outro lado, a comunidade psicanalítica assiste aterrorizada ao estabelecimento de uma escola, que se diz ortodoxa, anuncia concurso vestibular, se propõe com uma falsa vestimenta acadêmica e dissemina uma proposta para formar psicanalistas, conferir-lhes diploma e carteirinha, mediante um curso mensal, de fim de semana, com leituras de apostilas mal redigidas. Em apenas dois anos, grupos numerosos de pessoas seriam lançados no âmbito da saúde mental absolutamente despreparados. Essa escola, cuja matriz situa-se em Niterói, espalha-se pelo Brasil, procura dominar norte e sul, constituindo-se, ao que tudo indica, num empreendimento rentável, na medida em que atrai um grande número de insatisfeitos em suas vidas profissionais. Tornar-se psicanalista em dois anos, sem o percurso prolongado de uma análise pessoal, é, sem dúvida, uma proposta sedutora. Vinculado a um movimento evangélico, o aludido projeto que tramita na Câmara Federal tem, igualmente - coincidência ou não -, suas raízes no mesmo movimento religioso. Que diria o fundador da psicanálise se cá ainda estivesse vivo!

Freud preocupava-se com a transmissão da psicanálise e com a formação dos psicanalistas. Em 1902, instituiu as chamadas Noites Psicológicas das Quartas-Feiras, mais tarde Sessões das Noites de Quarta-Feira, quando reunia, em seu apartamento, um grupo fechado de interessados na psicanálise, que então dava os seus primeiros passos. Não existe um documento que tenha registrado esses primeiros encontros acontecidos entre 1902 e 1906. Entretanto, a partir de 10 de outubro de 1906, essas reuniões foram documentadas nas Atas da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras. Em 1908, foi criada a Sociedade Psicológica de Viena e, dois anos após, as reuniões foram transferidas do apartamento de Freud para o Colégio de Doutores. Essas atas, elaboradas por Otto Rank, secretário da sociedade, e editadas em alemão, foram posteriormente traduzidas e publicadas pelas Éditions Gallimard em quatro volumes intitulados Les premiers psychanalystes. Minutes de la Société de Vienne. Sua leitura é de extremo interesse, pois elas nos mostram como a psicanálise iniciou a sua divulgação para além dos textos de Freud.

Um grupo de intelectuais do início do século, constituído não apenas por médicos, psiquiatras ou psicólogos, mas também por educadores, artistas, escritores, poetas e musicistas, reunia-se em torno de Freud na procura da compreensão da alma humana, insatisfeitos que estavam com o saber que circulava através das chamadas ciências humanas. O espírito dominante era o da pesquisa. Nesse sentido, é importante salientar que não apenas eram discutidos os textos freudianos, já escritos nessa época, mas havia o entusiasmo de acrescentar novas contribuições às idéias do mestre.

Constatamos, através dessas atas, uma riqueza imensa de descobertas. Diferentes intelectuais apresentavam resenhas de livros e artigos de revistas e os comentavam, liam as últimas conquistas da biologia, da psicologia animal, da sociologia, da filosofia, da mitologia, da religião, das artes plásticas, da literatura, da música, da educação, da criminologia, etc., enfim, toda a produção intelectual dominante. A clínica era discutida não apenas através de material clínico, mas também comportava análises de poetas, artistas, criminosos e até mesmo depoimentos pessoais. Consideravam que era importante compreender o comportamento humano, mas igualmente as manifestações da cultura. Desse modo, a psicanálise surgiu e se solidificou através da participação de um grupo de profissionais altamente qualificados.

Embora de formação médica, Freud, desde cedo, compreendeu que a ciência que então iniciava não se enquadrava em nenhum espaço acadêmico existente, sobretudo no da medicina. A preocupação com a sua transmissão e, conseqüentemente, com a sua permanência, levou à criação da Sociedade Psicanalítica Internacional, que defendeu para si a responsabilidade dessa formação. É importante salientar que a psicanálise sempre esteve fora dos ambientes universitários, acadêmicos, oficiais e tradicionais. A sua expansão e divulgação esteve a cargo das chamadas associações e sociedades psicanalíticas. Embora se multiplicando por diferentes leituras do texto freudiano, a verdade é que a psicanálise manteve sempre pontos de unidade importantes: a crença na existência do inconsciente, a lei da associação livre, premissa básica do seu método, e a certeza da complexidade da formação do psicanalista.

A experiência do psicanalista, que também se insere no ofício de sua transmissão, lhe revela que, em média, dez anos se passam como etapa inicial de uma formação que nunca se conclui, e, por isso mesmo, diplomas e documentos oficiais de titulação de psicanalista nunca existiram. As diferentes sociedades têm seus critérios para constituir o seu próprio grupo de psicanalistas. Podem variar em detalhes, mas são unânimes nas exigências que repousam sobre um tripé de formação: análise pessoal, estudo teórico e análise da clínica ou supervisão.

Quando, na Áustria, surgiu uma lei preventiva proibindo aos não-médicos a prática da análise, Freud escreveu um longo artigo que intitulou A questão da análise leiga, onde defendeu a idéia de que é fora do âmbito da medicina que a formação dos analistas deve se concretizar. Segundo ele, um esquema de formação para analistas deveria abranger elementos das ciências mentais, da psicologia, da história da civilização e da sociologia, bem como da anatomia, da biologia e do estudo da evolução (...) abrangeria ramos de conhecimentos distantes da medicina: a mitologia, a psicologia da religião, e a ciência da literatura. E salientou: Um ideal, sem dúvida. Mas um ideal que pode e deve ser concretizado(...)

Um dos motivos pelos quais, no nosso entender, os grupos de psicanalistas não podem se constituir em grandes agremiações, assim como ter pretensões universais, é o respeito pela individualidade, pelo estilo pessoal. A formação do psicanalista não pode seguir regras, pois cada qual tem que ter a liberdade para o tempo de sua própria análise, tempo este que é sempre longo. Por isso o quadro tradicional das universidades não pode abrigar tal formação, como também não há como aferir objetivamente os resultados de uma análise pessoal. A aferição é sempre subjetiva. Dada essa complexidade, Jacques Lacan procurou encontrar um complexo processo que intitulou de "passe", ou seja, o momento em que, ao finalizar a sua análise, o analisando faz a opção de tornar-se analista. Um processo que tentaria resolver a questão da didática, da relação entre o processo analítico (análise em intenção) e o conhecimento teórico da psicanálise (análise em extensão). Ele próprio reconheceu a insuficiência desse processo.

Que a psicanálise passe a se constituir como disciplina de estudo nas universidades, que ela possa abrigar mestrados e mesmo doutorados são questões que não tocam o âmbito da formação do psicanalista, pois todos os que abraçamos essa prática sabemos que o cerne de nossa formação consiste em anos e anos de análise pessoal, como também sabemos da dificuldade de podermos auferir resultados, objetivamente, dessa experiência fundamentalmente subjetiva. Nesse sentido é que cobra importância a existência das instituições psicanalíticas, espaço em que o analista encontra um suporte e um controle de sua prática.

O projeto do deputado e pastor evangélico Eber Silva, ao que tudo indica, desconhece inteiramente as exigências da formação do psicanalista. Nesse sentido, queremos apenas destacar o seu parágrafo único do Artigo 5, Capítulo II - Da formação do psicanalista clínico e o seu Artigo 12, Capítulo V - Da fiscalização do exercício nas Unidades da Federação.

O primeiro atribui ao Ministério da Educação e Cultura a tarefa de estabelecer um currículo com especificação de tempo máximo e mínimo para a formação do psicanalista, assim como a de prever não só o número de sessões de análise, qualificada de didática, como o de estágio a ser cumprido. Ora, todos os que acompanhamos o processo de surgimento da psicanálise e a preocupação de Freud com a sua transmissão sabemos que a formação do psicanalista vai muito além dessas especificações, sem comentarmos a inadequação das mesmas. O psicanalista se forma sobretudo em sua análise pessoal, que tem que ser vivida com independência e sem fixação de prazos mínimos ou máximos. Por outro lado, ainda que tenha tido formação médica, Freud soube muito bem mostrar as diferenças entre o procedimento médico e o procedimento analítico. Então, por que o os Conselhos de Medicina deveriam fiscalizar o exercício da profissão? Se a obra de Freud não foi consultada para a elaboração do referido projeto, pelo menos o seu texto A questão da análise leiga deveria ter sido lido.

Que existam ofertas enganosas, como a da chamada Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (SPOB), é o que, sem dúvida, merece fiscalização, sobretudo nesse momento em que a palavra corrupção está presente não apenas na mídia, mas no diálogo de todos, como fonte maior de preocupação.

2 comentários: